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Faces extremas

1. Roberto Schmitt-Prym é um caso especialíssimo na fotografia brasileira atual. É um Francis Bacon sem pinceis. Como nesse artista, algumas de suas figuras são retratadas em rostos retorcidos, macerados, disformes, além ou talvez aquém da percepção comum dos traços faciais. Não sabemos ao menos se nessas criaturas subjaz algum cotidiano torturado, insuportável, dissipador de nossa humanidade. Diante dos vagos homens e mulheres (principalmente mulheres) trabalhados por Roberto, captamos sem rodeios uma dissolução das formas. Dissolução, talvez, como o ápice de uma resposta: não tanto a um sofrimento inexpugnável para o espectador, mas a uma alienação anestesiada e diária diante de nossa própria narrativa biológica. Daí essa escolha por uma fotografia distorcida, retrabalhada parece que exaustivamente através de “métodos” invasivos para dentro da pureza física, realista, fiel à normatividade da aparência. A dedicação do artista ao desmantelamento de suas figuras evocaria um sentimento de seiva religiosa... Frente ao sistema humano perdidamente seduzido por um rol de apelos que o afastam de sua integridade, resta uma certa danação das formas, um certo ocaso do que pudemos obter dos nossos traços numa fase imemorial, quando o espelho conseguia reter de nós a imagem de uma promessa ainda não falsificada. Agora a fúria da face é fixada em um esplendor às avessas, torturante até onde o olho do artista pode se insurgir contra a matéria corporal do cotidiano. Essa instrumentalização carnal que nos constitui à revelia de nós mesmos, eivada de uma “beleza” escapista, habitante de um circuito massivo, puro fetiche em constante estado descartável, por isso obsceno... E Roberto Schmitt- Prym é o artista certo para essa empreitada. Artista raro e preparado para tal incursão pelos infernos do nosso conteúdo físico, a ponto de, frente a seu trabalho, reconhecermos a nós mesmos numa fabulação monstruosa, já sem memória do que um dia conseguimos vislumbrar nos sonhos de nossa fisionomia. Fotógrafo por vezes de um intimismo terrificante, Roberto nos revela uma carnalidade anterior a qualquer ordem, mais ultrajante do que o espelho humano pode suportar. Dessa transgressão quase satânica é que vem seu virtusiosmo, virtuosismo obsessivo em seus procedimentos, fixados nos traços deformados de alguns “modelos” que se submetem ao toque brutal do fotógrafo, como se só assim conseguissem expressar uma quimera aprisionada. É essa fixação em alguns traços crispados que dão por vezes ao trabalho o tom de um quadro abstrato. Mesmo que provisoriamente, a “crueldade” do artista pode, sim, libertar seus protótipos humanos. Ninguém sai o mesmo de um trauma assim tão devastador, quase um épico a caminho do fim de uma identidade.

2. Mas esse fotógrafo, no entanto, ainda é mais vasto do que isso. Pois de sua lente nasce um outro viés, de certa maneira contraditório em face do outro. Nele são apreendidas mulheres com um meio-sorriso, olhar esgazeado, banhadas muitas vezes em alvura, ínfimos e fluidos cenários, uma metafísica sensorial ---, a sensação de que estamos diante de uma aventurança à beira de se perder, deixando-nos em uma aflitiva saudade. Em grave déficit. Quem são? Por que nos fazem padecer antes mesmo dessa fuga para nada? Eis o artista a produzir um feminino diante do qual não nos sentimos seguros para perdurar. É tão bela essa série, dela emana tantos eflúvios que não temos mãos para tomá-los. O melhor mesmo seria dar ao nosso inconsciente a tarefa de fotografar o que já é fotografia, para só depois, num desvão inesperado da mente, reconstituirmos o suave gozo dessas criaturas em flutuantes segredos, para não dizer, em instantes misteriosos, vivendo, sim, um verdadeiro “claro enigma”. Duas velas acesas, véu no rosto, face diluída no branco, expressão de grito sem semântica, eis os signos de uma vestal muitas vezes mais que insinuante... É nessa parte que o fotógrafo exprime melhor o seu pendor fatal. Cada trabalho parece nos dizer que o mundo flui e que é preciso tomar as imagens antes que elas não possam mais se dar. Roberto é tão singular que doi. E sempre assombra. Para querermos mais. E ainda mais.


            João Gilberto Noll - escritor