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O elogio da memória

            Para ver os trabalhos de Roberto Schmitt-Prym, necessitamos mais do que o olhar: precisamos, antes de tudo, de silêncio, vagar e calma. Precisamos, depois, certo sentido de recolhimento. Não são para serem vistos com atenção dispersa. São obras exigentes. Precisamos, ainda, de uma entranhada consonância com o estado da arte de hoje. Precisamos nos reconhecer como integrantes de uma tradição. É muito? Não: basta que tenhamos a necessária inteligência para saber que o mundo não começa por nós: somos apenas um elo dessa cadeia que possui milênios e que começou pelas pinturas rupestres, que nos encantam por sua simplicidade e força.

            Admiremos essas obras de arte que nos propõe o artista-fotógrafo: se somos viajados ou sumariamente informados dos prédios, monumentos e vias públicas que formam o cânone plástico e arquitetônico do Ocidente, podemos, premindo gentilmente os olhos, reconhecer a Notre-Dame de Paris, o Castel Sant´Angelo de Roma, o interior da Catedral de Brasília, uma avenida de Porto Alegre, alguns vitrais góticos da Europa Central. Com os olhos abertos, as pupilas dilatadas, essas imagens algo familiares desdobram-se em réplicas infinitas, instando-se uma tridimensionalidade tão fértil como são as histórias de cada um desses motivos retratados. Tudo isso é obtido com um sentido de alto refinamento existencial: o estranhamento decorrerá de nosso diálogo com a obra, que na verdade será um diálogo com o próprio artista; nós, com nossas incertezas, com nossa precariedade humana, mas também com nossa capacidade de encarar os desafios do novo; já o artista colaborará com sua capacidade de interpretar e transformar o mundo. Tratar-se-á de uma conversa pausada, na qual tentaremos atribuir sentido àquilo que visualmente nos atrai e inquieta. Tomemos como exemplo o impressionante estudo do Reichstadt de Berlim. A desconstrução da foto mediante a sucessão frenética de superposições faz com que o parlamento alemão adquira uma formidável gama de possibilidades interpretativas. Se conhecermos sua dramática história, entenderemos melhor o contraste existente entre a dissolução aleatória, a evocar momentos sombrios de história, e que faz contraste com o pavimento retilíneo, profundamente claro, contemporâneo e asséptico, a significar que a história é esse continuum permeado de alternâncias ideológicas e políticas, e que sempre haverá uma esperança para a Humanidade. A quem desconhece o que significa o Reichstadt, ficará uma duradoura sensação de harmonia entre as cores ocres atribuídas ao edifício com o céu de nuvens baixas e sujas, tudo isso fazendo luzir a parte inferior, realizada em grafismos quase abstratos.

            Outra imagem de impacto é a pirâmide asteca com o topo expandido em várias pirâmides, e que ficam flutuando num espaço tempestuoso, trazendo-os a lembrança dos sacrifícios que ali se realizavam, e que até hoje não entendemos bem como aconteciam. No entanto, sua esmagadora presença perturba-nos. É sim a pirâmide asteca, mas é mais do que isso: é a representação cabal de um inquietante estágio civilizatório.  

            O título da exposição remete-nos à memória, o que abre um outro inesgotável leque hermenêutico. Sendo a memória, como diz Cícero, o tesouro e guardião de todas as coisas, aqui a memória cumpre esse papel. Sim, há tesouros, que não devem ser confundidos, é claro, com a riqueza material dos objetos captados da lente. São tesouros de significados. Uma igreja não o é, apenas. Uma igreja é a metafísica esculpida em pedra. Uma igreja simboliza uma cultura e uma história. Está repleta de significados, por vezes contraditórios. Quando nossa memória a evoca, ela se nos “aparecerá” na mente assim como Schmitt-Prym as apresenta: estilizada, múltipla, cambiante, duvidosa, imprecisa, estranha. E felizes somos nós, que há alguém de sensibilidade, um artista que, operando meios técnicos radicalmente contemporâneos, obtém o admirável efeito de provocar nossa memória, que se nos revela cheia de sensibilidade e conteúdo humano.

            A arte de Roberto Schmitt-Prym é destinada tanto a apreciadores de sofisticado senso estético como a pessoas que ainda estão à procura de seu modus de enxergar a vida. Ambos experimentarão sensações poderosas: os primeiros, transitarão do prazer ao conhecimento e à reflexão; os segundos, experimentarão as sensações quase tangíveis de uma arte superior.

            Sairemos transformados após a visão detalhada, e repetimos, calma e vagarosa, dessas obras que podemos incorporar ao que mais belo tem produzido o espírito dos homens e mulheres de nosso tempo.

            E agora, silêncio. Deixemos que essas imagens falem à nossa alma, essa entidade tão curiosa e tão cheia de memórias.

 

            Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor